EM DEFESA DA FUNDAÇÃO PALMARES

EM DEFESA DA FUNDAÇÃO PALMARES

O movimento negro vem incansavelmente exigindo que ações e medidas sejam tomadas pela ordem jurídica nacional e internacional como forma de proteger e promover a dignidade da pessoa humana, a igualdade de todos e todas e de sua cultura milenar. Assim, documentos como a Constituição Federal (1988), a Convenção Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (1969), a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2006) e o Estatuto da Igualdade Racial (2010) vinculam a atuação do Estado Brasileiro e suas instituições no sentido de limitar o poder dos mesmos quando atentam contra a dignidade do povo brasileiro, em especial o negro. Nós não podemos aceitar as atividades em curso da Fundação Cultural Palmares, nem o seu presidente atual, Sr. Sérgio Nascimento de Camargo. Nós exigimos que a instituição volte ao seu objetivo e missão, que é trabalhar para a promoção da política cultural de igualdade e inclusão que contribui para a valorização da História e a preservação das manifestações culturais, científicas e artísticas da população negra como patrimônio nacional.
CARTA
AO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
O movimento negro vem incansavelmente exigindo que ações e medidas sejam tomadas pela ordem jurídica nacional e internacional como forma de proteger e promover a dignidade da pessoa humana, a igualdade de todos e todas e de sua cultura milenar. Assim, documentos como a Constituição Federal (1988), a Convenção Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (1969), a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2006) e o Estatuto da Igualdade Racial (2010) vinculam a atuação do Estado Brasileiro e suas instituições no sentido de limitar o poder dos mesmos quando atentam contra a dignidade do povo brasileiro, em especial o negro, e de guiá-los quando há a necessidade de orientação para promover ações que revertam o racismo estrutural e institucional resultantes de crimes de lesa-humanidade praticados por este país, tais como o colonialismo, a escravidão e o racismo. É importante destacar que esses crimes foram reconhecidos pelo Estado Brasileiro na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU e realizada em 2001 na cidade de Durban, África do Sul.
Se por um lado nossas reivindicações contribuíram para transformar nossas lutas em marcos jurídicos civilizacionais, por outro lado nós sabemos muito bem que elas são apenas o ponto de partida para acabar com o racismo. Embora o estado brasileiro esteja comprometido com a ordem jurídica internacional de direitos humanos, nós não podemos nos esquecer que o mesmo já foi julgado perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (nos casos de Simone André Diniz e Wallace de Almeida) e pelo Comitê Nacional das Nações Unidas para a Eliminação das Discriminações contra as Mulheres (no caso de Alyne Pimentel). Todos esses casos explicam como o racismo estrutural e interseccional funciona em nosso país, principalmente quando está relacionado à omissão das autoridades governamentais.
Além disso, pode-se pontuar que o Brasil está ciente do genocídio da população negra, o qual está estruturado pelas práticas dos agentes do estado e grupos militares que matam pessoas negras nas periferias como se não tivessem direito à dignidade. Esse fato é tristemente confirmado pelo Mapa da Violência em 2016 e pelo Atlas da Violência em 2017. Nesse sentido, quando nós verificamos que o governo federal brasileiro é maioritariamente composto por ministros brancos, o que significa que poucos negros estão nos altos escalões do governo, objetivamente vemos a reprodução de práticas discriminatórias contra os afro-brasileiros, o enaltecimento da cultura branca como a única forma positiva de desenvolver o país e, consequentemente, o aviltamento da cultura negra que juntos aprofundam mais e mais o racismo estrutural. Da perspectiva da nossa diversa negritude, nós, intelectuais negros, nos posicionamos contra o governo supremacista branco e lutamos, juntamente com as memórias de nossos ancestrais, para termos nossos pensamentos e valores respeitados, considerados fundamentais para o processo civilizatório desta nação.
Nós endereçamos esta carta à pessoa responsável por essa administração. Nós queremos lembrá-lo, bem como lembrar a todos, o significado da representação em espaços de poder. Representação nos é crucial porque está conectada ao projeto de emancipação racial que nós negros reivindicamos ao longo dos anos, independente do número de tentativas de nos silenciar. Nós estamos lembrando o projeto apresentado por Luiz Gama que trata da emancipação de nossos ancestrais. Nós estamos falando sobre Lélia Gonzalez e a emancipação das mulheres negras. Nós estamos pontuando Abdias do Nascimento e seu projeto de combater o genocídio perpetrado contra a população negra. Logo, a identidade racial de Sergio Camargo, como homem negro, não nos importa porque sua posição consolida o poder racial branco deste governo. Na medida em que o racismo é estrutural e institucional em nossa sociedade, isto é, não precisa de intenção para se manifestar, a mudança que nós queremos fazer nesta sociedade requer, além das reivindicações e do repúdio moral do racismo, promoções, tomadas de decisão, adoção de novas práticas e participação ativa de pessoas negras e não negras em ações antirracistas. Isso pode e deve ser um compromisso de toda a população brasileira.
Nós todos sabemos também que os racismos têm diferentes fundamentos, formas, modalidades, conteúdos, matizes, desdobramentos e impactos no passado e no presente das sociedades. Desse modo, é importante sublinhar que, em nosso país, o racismo é um crime inafiançável e imprescritível, de acordo com a constituição de 1988, bem como uma prática inaceitável em qualquer sociedade contemporânea, uma vez que é entendido não somente como desigualdade em termos de acesso a bens e valores presumidos na Constituição, mas também como algo que prejudica a dignidade do ser humano. Portanto, não é possível aceitar os intolerantes e não democráticos que querem rasgar a nossa Constituição e os seus valores éticos e civilizacionais. Não há lugar aqui para aqueles que querem trazer caos e medo ao nosso país com a chancela do poder executivo. Nós devemos pôr fim aos prejuízos em curso à nossa Constituição.
Tendo dito isso, nós destacamos que esta carta denuncia os atos ilegais cometidos pela pessoa no comando da Fundação Cultural Palmares e exigimos investigação, bem como punição severa por suas irresponsabilidades. A Fundação Cultural Palmares, instituição governamental e pública, criada em 22 de agosto de 1988, como consta na lei nº 7.688, foi fundada pelo governo federal com o propósito de promover e preservar os valores conectados à negritude, construir um programa de ação afirmativa consistente e apoiar políticas públicas antirracistas. Os objetivos da Fundação Cultural Palmares são o reconhecimento e apreciação da grande contribuição da população negra brasileira ao país, dando conta das verdadeiras demandas da sociedade civil nacional, bem como de suas instituições, associações e especialmente do Movimento Negro brasileiro. Por exemplo, a Fundação Cultural Palmares tinha uma parceria com o Ministério da Educação para formular ações e políticas públicas em favor da cultura afro-brasileira e para promover a diversidade religiosa no intuito de superar a desigualdade educacional na escolaridade média entre estudantes negros e não-negros. Ela também é responsável pelo cumprimento da lei 10639/2003, que estabelece a obrigatoriedade legal de ensinar História e Cultura Africana e Afro-Brasileira em diferentes níveis educacionais no Brasil.
Além disso, sendo uma unidade da administração pública, a Fundação Cultural Palmares não pertence a qualquer governo de plantão. Não pode ser administrada a bel-prazer nem ser um espaço para amadorismo espontâneo, tampouco para um diletantismo militante barulhento sobre algo que não se sabe, mas se ouviu falar. Em instituições estatais, não há espaço para a falta de compromisso em administrá-las, operá-las, geri-las e realizar políticas públicas que estão de acordo com os interesses da população brasileira, especialmente os negros.
A Fundação Cultural Palmares emitiu uma nota em que afirma as ações positivas que tem desenvolvido. Entretanto, os fatos demonstram que elas são falsas porque seu presidente, Sr. Sérgio Nascimento de Camargo, desqualifica o Movimento Negro brasileiro o tempo todo, caracterizando-o como “escória maldita” e frequentemente expressa seu desejo de revogar a comemoração do Dia da Consciência Negra. Além disso, ele usualmente minimiza as questões relacionadas ao genocídio da população negra dizendo “Todas as vidas importam”. Seu comportamento prejudica os sentidos e objetivos dos movimentos antirracistas locais e globais que agora, após a morte de George Floyd, estão gritando para o mundo todo ouvir: “Vidas negras importam”.
Atitudes como as tomadas pelo presidente da Fundação Cultural Palmares são inaceitáveis e criminosas, uma vez que destroem o patrimônio e os valores históricos, sociais, econômicos, científicos, éticos e civilizacionais resultantes das influências africanas na formação da sociedade brasileira. O modus operandi racista do presidente atual da Fundação Cultural Palmares e seu corpo diretivo fere o princípio constitucional de moralidade administrativa. Ainda assim, o presidente da Fundação busca reverter a direção da lógica constitucional de preservação da cultura africana e afro-brasileira. O antirracismo deveria guiar as ações da Fundação, não o oposto, como temos visto com as práticas racistas em curso da desonestidade administrativa perpetrada contra a memória, o legado e o patrimônio cultural da população brasileira. Quando expõe materiais para difamar e injuriar o grande líder negro deste país, Zumbi dos Palmares, também reconhecido por diferentes instituições científicas e escolares e por diversas esferas de poder, a Fundação subverte e deturpa a História, principalmente porque ignora o conteúdo relevante divulgado por esses espaços que demonstram uma ampla gama de bibliografia científica e acadêmica relacionada à luta por liberdade, por acesso à terra, por dignidade do ser humano e pelo fim da escravidão.
Vale a pena lembrar que desde 1988 muitos administradores geriram essa instituição, mas nenhum cometeu crimes contra o legado nacional nem agiu contra a missão institucional, política ou constitucional. O presidente atual tem colaborado para o empoderamento das ideologias supremacistas brancas e o aprofundamento das desigualdades entre negros e brancos, desigualdades que são os resultados do racismo secular que ainda persiste no nosso país. Portanto, é inaceitável qualquer hipótese de permanência dessa direção. Nós não podemos aceitar as atividades em curso da Fundação Cultural Palmares, nem o seu presidente atual, Sr. Sérgio Nascimento de Camargo. Nós exigimos que a instituição volte ao seu objetivo e missão, que é trabalhar para a promoção da política cultural de igualdade e inclusão que contribui para a valorização da História e a preservação das manifestações culturais, científicas e artísticas da população negra como patrimônio nacional.
Todas as ações negativas contra o Movimento Negro brasileiro feitas pela Fundação, como pontuado antes, merecem o nosso profundo repúdio. Nós exigimos investigações com transparência e responsabilidade sobre as ações do presidente da Fundação Cultural Palmares. Nós queremos sua imediata renúncia porque, em um curto período de tempo, seus passos demonstraram um nítido projeto para destruir essa instituição federal que foi construída para valorizar o patrimônio afro-brasileiro. Essas atitudes e práticas racistas são inaceitáveis pelo Movimento Social Negro, pelos intelectuais negros brasileiros e, principalmente, pela população negra nos mais variados setores da sociedade brasileira cujas memórias não podem ser eliminadas pelos agentes do estado.