Manifesto Contra a Mineração de Urânio no Estado do Ceará

Manifesto Contra a Mineração de Urânio no Estado do Ceará

Genocídio com Radioatividade
Manifesto contra uma morte anunciada
Professoras, Professores e Estudantes do Curso de Graduação em Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará lançam um Manifesto contra a mineração do urânio no município de Santa Quitéria, Ceará.
Dirigimo-nos aos gestores públicos do Estado, aos Prefeitos e Vereadores dos Municípios direta e indiretamente afetados pela radioatividade que vai ser emitida quando da operação do Projeto Santa Quitéria-PSQ; Parlamentares de todas as esferas do Legislativo; órgãos responsáveis pela aprovação do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório Impacto Ambiental (EIA/RIMA); no sentido de que SEJAM SUSPENSOS, DEFINITIVAMENTE, TODOS OS PROCEDIMENTOS PARA O INÍCIO DAS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO DO URÂNIO NO CEARÁ.
Nosso Manifesto
Em junho de 1976 foi encontrada a reserva de urânio e fosfato no município de Santa Quitéria-CE. Inicia-se aí uma longa caminhada da elaboração do projeto da exploração do minério que ganharia o formato de uma parceria público-privada genocida. Depois de quase 40 anos, em agosto de 1983, ficou constatada a viabilidade da exploração da Mina de Itataia, alardeada como a última e mais promissora jazida de urânio prospectada do País.
A Mina de Itataia tem se tornado um objeto da ambição dos gestores públicos – municipais, estaduais e federais – e de empresários, mas um pesadelo para as comunidades que residem nas proximidades. Hoje, a iminência da aprovação apressada para o início da exploração do urânio faz ressurgir o temor das ameaças à saúde da população, elevação dos riscos de impactos ambientais irreversíveis sobre a biodiversidade, contaminação do solo e da atmosfera. A exploração desse minério radioativo causará a desestruturação do modo de produção e de vida de mulheres e homens que retiram o sustento da agricultura familiar na região, bem como das pessoas que residem nas cidades circunvizinhas.
O debate dentro da esfera governamental sempre enfatiza os benefícios que a mina trará para os municípios e para a população da região. Prometem empregos diretos e indiretos, afirmam que arrecadação de impostos vai crescer, que a cidade vai se expandir, que a construção civil vai se tornar muito importante para os municípios situados na área de influência econômica da mineração. Na realidade, prometem um paraíso pra lá de radioativo.
Absolutamente nada tem sido mencionado sobre os custos sociais e ecológicos que a atividade da mineração causa em qualquer lugar onde ocorrer. Nada tem sido relatado sobre os acidentes ocorridos quando das pesquisas iniciais para dimensionar o potencial de Itataia. Menos ainda sobre os danos sociais e ambientais que as atividades de extração, transformação e descarte de rejeitos ocasionarão. A análise da viabilidade é inteiramente favorável aos ganhos econômicos fabulosos do Estado e das Prefeituras, e da empresa parceira. Mas, inteiramente desfavorável do ponto de vista social e ecológico. O Projeto Santa Quitéria é uma desgraça anunciada.
Uma avaliação de riscos que tenha a vida como valor central irá demonstrar que a radioatividade emitida nas fases iniciais da separação do urânio do fosfato e nas demais terá, fatalmente, impactos sobre a saúde humana, com a incidência de cânceres e de outras doenças, bem como sobre a saúde dos ecossistemas local e regional. A análise da viabilidade econômica é, contudo, uma sentença de morte para as comunidades e para a biodiversidade existente na área das atividades de extração do minério e do descarte dos rejeitos. Ao mesmo tempo, é uma ameaça à população residente no trajeto do transporte da pasta radioativa de urânio até o Porto do Mucuripe (Fortaleza) ou Porto do Pecém (São Gonçalo do Amarante).
[1] A pasta radioativa é conhecida por yellow cake (pasta amarela): a matéria-prima básica do ciclo de produção de combustível nuclear.
A saúde das famílias que residem próximas ao empreendimento, bem como suas atividades, serão afetadas irreversivelmente, não apenas durante o funcionamento da mina, mas para além da fase de descomissionamento.
Em perspectiva, há enormes prejuízos para a população que reside no entorno da mina e para aquelas famílias que residem em outras comunidades, principalmente nos municípios de Santa Quitéria e de Itatira. Os assentamentos que se organizaram em Santa Quitéria, depois de muita luta pela terra – Saco do Belém, Morrinho, Queimadas e Alegre Tatajuba –, também serão afetados em virtude da contaminação radioativa de seus organismos e de seus cultivos agrícolas. Estão sob risco as populações dos municípios de Canindé, Madalena e Boa Viagem, e provavelmente de Sobral.
Como consequência da radiação emitida pelas atividades de extração, beneficiamento e do transporte de produtos processados, as populações e os assentados serão obrigados a abandonar seus territórios. A radioatividade será fatal para as atividades agrícolas e para a saúde humana. Neste sentido, o futuro de Santa Quitéria já pode ser antecipado pelo que aconteceu em Caldas-MG e Caetité-BA: sua população será vítima de uma série de violação de direitos e de muitas desgraças sanitárias.
A mina de Caldas ainda está em processo de descomissionamento; em Caetité extração (iniciada em 1999) está próxima do encerramento. Há relatos de que a população do município baiano convive com níveis de radiação 100 vezes maiores do que a média mundial; e que Caetité é forte candidato a sofrer consequências semelhantes àquelas registradas em Caldas. Os danos que ocorreram em Caldas, ocorrem em Caetité e ocorrerão em Santa Quitéria: poluição e contaminação do ar, da água e do solo.
Em Caetité (Bahia) têm ocorrido intensos conflitos em que a população local atribui ao empreendimento a responsabilidade pelos altos índices de ocorrência de câncer na região. Um desses conflitos esteve vinculado à desativação das atividades de extração e beneficiamento de Urânio em Caldas (Minas Gerais). Inicialmente Caetité esteve ameaçada de receber rejeitos radioativos da Usina de Santo Amaro, São Paulo, e depois o rejeito de Caldas. A luta surtiu efeito com a proibição de deposição. A luta social foi parcialmente vitoriosa, pois evitou uma mal muito maior.
Mas, no município baiano, logo surgiu uma grande preocupação com a contaminação dos corpos hídricos locais. A terra revolvida que restou das lavras, contém grande concentração de sulfetos que, em contato com águas pluviais formam o ácido sulfúrico. Além de contaminar lençóis freáticos e cursos d’água, é um ácido capaz de solubilizar o urânio e carreá-lo para o solo. Não há tecnologia disponível para neutralizar estes riscos de contaminação das águas pelo lixo radioativo.
É importante notar que Caetité é um município com características de cerrado e caatinga. De há muito enfrenta um sério problema de desmatamento indiscriminado, destinado à produção de carvão para as grandes siderúrgicas de Minas Gerais e à atividade ceramista. Para piorar a situação socioambiental do município, a mineração de urânio tem deixado sua população repleta de inseguranças, angústias e incertezas. A incidência de câncer cresce sem controle, atingindo a faixa etária entre 30 e 40 anos. O município não dispõe de estrutura para o atendimento e tratamento desta doença, o que obriga as pessoas a buscarem tratamento em outros municípios, na capital Salvador ou mesmo em São Paulo.
[2] O descomissionamento compreende as ações de desmontagem de instalações e monitoramento do armazenamento final de todo o rejeito radioativo. Além disso, também compreende a recuperação do passivo ambiental (vegetação, águas etc.) e do passivo social em termos das condições sociais de vida da população afetada.
Os impactos não ocorrem apenas sobre a saúde humana. A agricultura familiar de Caetité também foi atingida de maneira significativa. Como sabemos, esse importante setor da produção tem desenvolvido tecnologias ecologicamente sustentáveis que reduzem a dependência das comunidades à regularidade da chuva. Como exemplos, a construção de cisternas de placas para armazenar água e a utilização de técnicas de cultivo agroecológico, têm possibilitado importantes avanços no processo de convivência no Semiárido. São práticas que priorizam a diversificação da produção e garantem relativa soberania alimentar. Em Caldas as atividades agrícolas e a pecuária foram negativamente afetadas pelo temor dos comparadores de que os produtos – mandioca, gado, leite e queijo da região e outros – estivessem contaminados pela radiação direta causada pelas atividades de mineração e do beneficiamento do urânio.
Como ficarão a água, o solo, a fauna e a flora, a arrecadação de impostos, a infraestrutura construída, o emprego, a renda e as condições de moradia, quando ocorrer a desmobilização do empreendimento?
A resposta é previsível. Basta visitar Caldas para se constatar o cenário de abandono e o legado da incidência desproporcional de câncer, quando se compara este município aos demais do estado de Minas Gerais.
O futuro de Caetité (Bahia), já está desenhado em Caldas (Minas gerais). A mineração e o processamento de urânio expõem a enormes riscos, o ambiente natural e a saúde da população. A esses riscos deve ser somada a desestruturação de um território em que a comunidade desenvolveu um modo de vida integrado aos ecossistemas regionais que ajuda a reter populações, a evitar a emigração de jovens para cidades de maior porte.
O atual governo (genocida) do ex-capitão do exército está decidido a ampliar o programa nuclear brasileiro com sucessivos anúncios da retomada do programa de geração de energia nuclear no Brasil. Com a proximidade do encerramento da mineração de urânio em Caetité reacendem as expectativas do início das atividades na Mina de Itataia no Ceará. O Consórcio responsável, INB-Galvani, já conta como certa a obtenção da licença prévia do IBAMA.
A imprensa no Ceará noticiou que o Sr. Camilo Santana antes de se desincompatibilizar com o cargo de governador, lamentavelmente assinou um memorando de entendimento para dar início a exploração industrial do urânio de Itataia. O evento ocorreu na presença de representantes do Consórcio INB-Galvani e de autoridades das esferas federal e municipais. A postura claramente antiecológica ficou reforçada com a promessa governamental de construir uma adutora para levar água ao empreendimento, estradas de acesso e escoamento da produção e a capacitação da mão de obra em parceria com a Federação da Indústria do Ceará-FIEC.
Assim, o esperado aumento da demanda por urânio, em função da retomada do programa nuclear brasileiro e do esgotamento da mina de Caetité, pressionará o início das atividades da mineração do urânio no Ceará. O apressamento do início das operações de extração e beneficiamento, significará o início de muitos problemas que afetarão a economia, o modo de vida dos territórios e a saúde humana e do ambiente natural.
É preciso enfatizar que toda e qualquer exploração mineral é uma atividade não sustentável, pelo simples fato de que, o que foi extraído nunca mais será reposto. Mais ainda porque, o urânio é um bem natural de baixa entropia cujo produto é sua transformação resíduos de elevada entropia na forma de lixo radioativo. Com um problema a mais. No caso em questão, trata-se da extração de um minério em que fosfato e urânio se encontram associados. O primeiro elemento da associação é a matéria-prima básica para a produção de fertilizante fosfatado de alto teor que irá abastecer as lavouras e alimentar rebanhos do Norte e do Nordeste. O urânio é a matéria-prima para o programa de energia nuclear do País.
Embora seja prometido que serão adotados procedimentos para ‘reduzir’ os impactos ambientais da mineração – refazimento da cobertura vegetal, preservação de cursos d'água, recuperação da flora e da fauna da região, controle da poluição sonora e adequada deposição de rejeitos – isto é impossível de ocorrer.
A principal característica da mineração é que seus impactos são irreversíveis. O preenchimento da cava não será realizado por alguma ação humana deliberada. Pela ação das forças da Natureza, a correção dos danos ambientais poderá ocorrer, mas a uma escala temporal para além do “tempo da humanidade”. Ademais, o urânio é um minério radioativo cujos efeitos serão disseminados ao longo de todo o percurso das atividades econômicas, até a produção do combustível nuclear e descarte do lixo radioativo.
Como se sabe, o ciclo do combustível nuclear corresponde a um conjunto de processos industriais que transformarão o minério de urânio no elemento combustível. A fissão dos átomos de urânio contidos no combustível nuclear ocorre dentro do núcleo do reator. O calor gerado aquece a água e o vapor liberado movimenta as turbinas que geram a energia elétrica. É um ciclo muito extenso que está associado a uma cadeia de riscos de desastres e de contaminação igualmente extensa ao longo de toda esta cadeia produtiva. É um longo ciclo que desperta interesses econômicos, bem como interesses políticos nada desprezíveis.
O lucro fabuloso do consórcio INB-Galvani que irá explorar o urânio, o suposto aumento de arrecadação do município onde a mina se localiza, o emprego e a renda que a população terá durante as atividades de mineração e beneficiamento são as razões apresentadas para justificar o Projeto Santa Quitéria. É secundária a preocupação relacionada à degradação ambiental, à redução da biodiversidade, à incidência de cânceres e à desestruturação de territórios.
Os impactos socioambientais negativos são passíveis de acontecer em todas as fases do ciclo da fabricação do combustível nuclear, desde a extração até a deposição do lixo radioativo. Eles ocorrem desde a cava (desmatamento, escavação, movimentação de terra, modificação da paisagem local) com a utilização de explosivos para fracionar as rochas (que causam sobrepressão atmosférica, vibração do terreno, lançamento de fragmentos, fumos, gases, poeira, ruído) e continua na atividade de separação do urânio do fosfato (com liberação de poeira e emissão de ruído) e durante o transporte do concentrado de urânio para enriquecimento. Em todas estas etapas do ciclo de fabricação do urânio concentrado existem elevados riscos de contaminação da água, do solo e do ar, além da quebra da tranquilidade da população local. Em resumo, além do desconforto, a saúde humana e o habitat de outras espécies existentes no ambiente serão ameaçados.
A exploração da mina de Itataia (Projeto Santa Quitéria) será feita a céu aberto e em cava, durante 20 anos. O minério ocorre desde a superfície até a profundidade de 180 metros. O que interessa é obter urânio e derivados fosfatados (fertilizante e alimentação animal). Os demais elementos associados são chamados de ‘estéril’, porque não têm valor econômico, mesmo que seja ‘fértil’ em termos de contaminação. A estimativa é de uma produção anual de 1.600 toneladas de concentrado de urânio e de 1.050.000 toneladas de derivados fosfatados (Relatório de Impacto Ambiental-RIMA, p. 6). É um projeto de investimento orçado em US$ 350 milhões (Estudo de Impacto Ambiental-EIA, Volume 1, p. 140).
[3] O material descartado chamado de “estéril” inclui uma camada de solo que atualmente serve de suporte à vegetação e de abrigo às várias espécies de animais que lá habitam. Portanto, não é estéril, mas sim fértil. Como a lavra será realizada a céu aberto, mesmo com a construção de canaletas para recolher as águas da chuva, não há garantias de que será evitada alguma infiltração e contaminação originada das barragens de rejeitos. A fertilidade necessária à flora e à fauna será fatalmente destruída.
Está prevista a devastação de 790,97 ha de vegetação e a retirada de uma camada de terra significativa para dar início ao processo de extração da rocha fosfatada por meios mecânicos e uso de explosivos. Depois da lavra a céu aberto, o terreno ficará pronto para a extração do minério a ser levado para a usina de beneficiamento no local da mineração.
Em resumo, a retirada do minério lavrado será realizada por escavação mecânica e uso de explosivos. No local será construída uma instalação industrial para os processos químicos e físicos a serem realizados. Nesta etapa do processamento são gerados rejeitos minerais e fosfogesso sem valor econômico. Contudo, o resultado que interessa é a geração de carbonato de urânio e de fertilizante e fosfato bicálcico. O carbonato de urânio segue para a instalação industrial em que será produzido o concentrado de urânio. O concentrado de urânio será transportado para o Porto do Mucuripe (Fortaleza) ou para o Porto do Pecém (São Gonçalo do Amarante).
Não há dúvidas que há interesses puramente econômicos, sem qualquer preocupação com vida. Claramente, é a reafirmação de um modelo extrativista que agride, degrada e destrói territórios em que se desenvolvem atividades humanas em harmonia com as condições ambientais neles existentes. É a demonstração de que a economia está acima de tudo.
Estarrecedor é constatar que prefeitos, o governo estadual e o governo federal se utilizam de uma retórica de convencimento genocida de que o projeto da mineração irá melhorar as condições de vida da população. Pior ainda, não querem ouvir as vozes das comunidades e acatar suas reivindicações para melhorar as atuais condições de vida. As comunidades organizadas em suas associações e movimentos contra a mineração têm propostas concretas para melhorar suas condições de vida, mas sem a exploração da mina. São propostas que poderão contribuir para a ampliação das atividades das famílias que cultivam a terra há muito tempo, em bases agroecológicas. A geração de renda daí decorrente pode sim contribuir para aumentar a arrecadação municipal de modo permanente, sem aumentar os gastos com a saúde das famílias.
Há um enorme potencial para que políticas públicas sejam definidas a partir das prioridades de cada comunidade. Uma das mais importantes é a promoção de incentivos para a ampliar a produção da agricultura familiar agroecológica. Sem agrotóxicos e diversificada, esta produção é uma garantia de alimentos saudáveis. A segurança hídrica pode ser resolvida com a construção de pequenos barramentos – de superfície ou subterrâneos – ao longo dos caminhos das águas pluviais e com instalação de cisternas de placa, e até mesmo de placas de energia fotovoltaicas em cada residência. Uma melhor atenção à saúde e uma política educacional com um forte componente cultural e ambiental trará perspectivas discerníveis para as gerações atuais e futuras.
Que garantias terão as comunidades de que não haverá vazamentos de produtos químicos para o solo, cursos d’água e contaminação do ar com poeira radioativa?
A manta elástica que ficará na base do aterro, e que servirá para impedir a passagem da água da chuva, terá resistência e duração suficiente para suportar todo período de radioatividade do fosfogesso descartado?
E como será feito o monitoramento da contaminação e dos níveis de radiação?
É fundamental que mineração de urânio saia do foco puramente politiqueiro e economicista. O governador, os prefeitos, secretários de saúde, defensores dos direitos humanos e outras autoridades públicas terão que voltar suas atenções para a importância vital das relações harmoniosas com a frágil biodiversidade que caracteriza o semiárido.
Os inúmeros problemas ocorridos em Caldas-MG (e Poços de Caldas-MG), e agora em Caetité-Bahia, servem de alerta para que se evite mais uma tragédia anunciada. O apelo é que não se cometa mais uma insanidade.
A conclusão é que o Projeto Santa Quitéria NÃO É viável do ponto de vista social e ecológico.
Deixem o ‘dragão’ dormindo no subsolo cearense!
A vida agradece.
Fortaleza, 3 de maio de 2022